The Lurker: Diário de uma Terra Estranha - Caderno XX:
O Sagrado e o Profano...
#### Warning - Long Post Ahead ####
Logo no início da narrativa havia ainda alguma dúvida sobre a eventualidade da mal-amada ter visto de entrada nos EUA. Saibam, pois, todos que o presente lerem que a ressaca persegue os ébrios contumazes, e possivelmente os eventuais, agora em três continentes... Bolas. De repente eu tinha certeza que todos os segredos da administração Clinton estavam lacrados em meu crânio. Devia ser por isso que estes pequenos gnomos republicanos tentavam abri-lo a golpes de machado...
Desci à deli em frente do hotel. Estava fechada: problemas com o gás encanado. Bem, não é como se faltasse onde tomar o desjejum em NY. Então o
McHale's Café, convenientemente ali perto deve ser o canto interessante do momento... se o problema do gás não atingir a rua inteira... O Café fica na 46, com indicação de existência dada por um velho e vermelho letreiro de néon: RESTAURANT (
no, really? You don't say!) O McHale's é um restaurante à moda antiga, não exatamente uma deli convencional. Uma de suas vantagens é estar fora do circuito turístico então, fora o eventual estudante da CUNY você deve ter a paz de não ser importunado pela multitude de turistas malcriados que assaltam NY pelo meio da semana. E, no meu caso, foi uma boa ocasião para bater um papo com alguns locais (
Go Peckers!). Segundo a crônica, o McHale's permanence o mesmo desde a década de 50 - go figure. Dois Colombian Black extra-short, um bagel com bacon extra-crisp e um balde de capuccino extra-large depois, os elfos republicanos parecem ter perdido seu élan e resolvido ir amolar Miss Lewinsky.
Good ridance!
Quarta-feira era dia de banco. Minha tia havia me pedido que trocasse cerca de três mil dólares em notas que, segundo ela, estavam antigas. Fui ao Banco do Brasil somente para descobrir que ele agora não fica onde morava antes, na 7th com 42, mas no Rockfeller Center, entrando pelo nº 600. Ora, acontece que o banco não presta este tipo de serviço. Aliás, nenhum banco faz isso! Ou melhor, faz, mas cobra uma taxa de 18% (e nós reclamando de nossos bancos). Agora, cabe uma menção honrosa a uma moça chamada Sônia, do BB/NY. Uma cortesia exemplar e uma simpatia de pessoa. Permitiu-me inclusive ligar para o Brasil para confirmar a operação que, claro, foi abortada na origem.

Atravessando o Rockfeller na direção da avenida é impossível deixar de ver a Catedral de Saint Patrick. Foi interessante porque havia um ensaio de corais e aproveitei para assistir as apresentações, que, diga-se de passagem, estavam muito boas e pareciam ser preparação para algum evento maior em outro momento. A organização estava muito boa e a escolha das músicas interessante. E eu já sou um bobo para ouvir
Amazing Grace... O resto do dia foi tranqüilo, então, passemos logo para a noite.
Eu bem que pensei em dar uma fugida no circuito Off Broadway, área onde sucessos como
STOMP e
RENT nasceram originalmente. Mas, com este clima fora de esquadro, achei melhor ficar com o conhecido. De mais a mais a única coisa que me havia interessado já estava lotada. Dentro do convencional tínhamos Billy Crystal com seus '700 sundays'; 'Spamalot', baseado, entre outras coisas no filme Camelot, de Monty Python, com texto de Eric Idle; 'La Cage Aux Foles', com o
Daniel Davis, que é um ator de comédias absolutamente hilário (mas a peça estava em cartaz no Marquis, que sempre é muito disputado, então é melhor nem pensar). Acabei optando por 'The Producers', com texto do Mel Brooks.
The Producers é uma comédia de erros em que dois produtores da Broadway decidem montar um musical para enriquecer. A lógica, para que isto ocorra, é a de que tudo dê errado com a peça e que eles embolsem o dinheiro dos investidores. Para isso,

elegem o pior roteiro disponível, adicionando os piores atores, cenário, coreógrafo, diretores, etc. A peça chama-se '
Springtime for Hitler', o que confirma o adágio de porque Brooks é o judeu que mais adora os nazistas: ele fez fortuna com a sátira a eles. No musical, o show, por milagre, dá certo e é um tremendo sucesso, complicando a vida dos produtores, vividos por
Richard Kind (Max 'Biali' Bialystock) e
Alan Ruck (Leo Bloom). No intervalo fiz amizade com um casal de canadenses. Small talk sobre temas diversos, mas nada realmente que interessasse.
Animado com o início da noite, decidi esticar no bar do
Hotel Edison, que sempre proporcionou boa diversão, com trechos de musicais sendo tocadas e cantadas pelos freqüentadores. Cheguei por volta das 8h45 e sentei no único banco disponível no balcão. Ali conheci Laura, americana de uma cidade perto de Boston cujo no me foge, e sua mãe Patrícia. Ambas de passagem por NY para resolver problemas familiares e aproveitando a cidade que apreciam pela vida cultural. Laura é uma moça de seus 20
something de cabelos pretos e olhos verdes, um tipo interessante, mesmo para padrões brasileiros - mas total e irremediavelmente doida, como se verá a seguir. Cuidando do trio tínhamos o jovem Bob Strassel e no piano a
talentosa Karen Brown. E assim apresento nosso
dramatis personae para esta cena.

Mal tiro luvas e cachecol, Laura me aborda, querendo informações sobre a peça (a
Playbill na minha mão foi '
kind off a give away'). Daí passamos para o clássico 'I can't quite place your accent' que aliás foi recursivo nesta viagem. Pensavam que eu era russo, eslavo, algo assim... go figure. Bob passa um bom tempo rondando-nos, com evidente interesse na moça e providencia-me um '
xtra dry Martini - dirty' de fechar o comércio enquanto Karen se esmera atendendo ao um pedido de um cavalheiro que não ia sossegar se não cantasse '
Bring Him Home' - uma de minhas cenas favoritas de
Les Miserables... mas extremamente depressiva, como pode-se ouvir. Mentalmente desejei sorte ao Bob em seu intento com sua compatriota, mas pelo rumo que a coisa ia indo, não apostei minhas fichas nele.
Laura, em seu segundo drinque já estava um tanto 'solta' e resolveu ir fumar. Em NY se você quiser, tem que ir fumar fora do estabelecimento - novos tempos, novas leis. E fique feliz. Neste ínterim, prosseguimos o agradável colóquio a três sobre a experiência de Patrícia na qualidade de alguma coisa grande no sistema educacional de Boston. Ficou muito impressionada pelo fato de eu trabalhar para uma agência da ONU - ela acredita que o papel dos EUA na organização precisa ser levado mais a sério pela administração do arbusto.
Para espanto de Patrícia sua filha retorna da rua com Samuel, um homeless que ela conhecera em sua pausa para tabaco, enquanto aquele vendia jornal (
evening edition) a 27ºF. Pede então um '
screwdriver' para ajudar a aquecê-lo. Bob, que é um cavalheiro, mas também é um profissional e sabe as conseqüências que este atendimento pode implicar, traz o drinque, mas pede a Samuel:
Make it a quick one.
Quantas vezes você teve a oportunidade de ter uma conversa civilizada com um
homeless em Nova Iorque? Bem, eu tive, em uma situação de relativo conforto. E, com minha irrefreável curiosidade de cientista social, inquiri sobre diversos aspectos de sua vida, que débâcle o levara à atual condição e por aí fui. Ocorre que Samuel é mais um refugiado da administração Bush e sua política de exportação de empregos. Bem, alguém tem que perder... e no caso é a classe baixa e negra estadunidense. Pitty. Lá pelas tantas Samuel interrompe a conversa e, de uma maneira extremamente elegante, consegue faz sua saída à francesa. O alívio de Bob fica estampado na cara quando me traz meu terceiro Martini... a esta altura nós já estávamos chapinhas:
This is on the house, ele diz.

Karen engrena de
Lion King, o musical da Disney que desta vez está em cartaz na Broadway. Nisso, Laura que havia saído com um certo Bill, supostamente ator que fez um 'try-out' para um comercial de empresa financeira, retorna com o telefone do bicho em um guardanapo. Com a classe de um peregrino que traz um escalpo pela mão, mostra-me o negócio e emenda algo semelhante a '
how easy can man be'. Aí já foi demais. O que éramos Bob e eu? Duas alfaces? Nesse momento Laura ganhou seu selo de louca-de-pedra e o pobre Bob guardou seus ferormônios. Pouco depois, Patrícia vendo que a filha já tinha tomando '
one too many' recolheu-a ao apartamento. No fim das contas, a mãe foi companhia muito mais interessante do que a filha. Classe e refinamento é uma coisa que vem com a experiência... Figures... Como diria Bernard Shaw 'A juventude é uma coisa linda. Pena ser desperdiçada nos jovens'. :-)
Com a saída da dupla, Bob a esta altura já me servia
free martinis by the dozen e o bar se esvaziava:
'last round, every one! Bar is closing'. Disceramente ele diz que isso não vale para mim... Resultado: ficamos ele, Karen, a gerente do estabelecimento e eu de papo até cerca de três da manhã. Desnecessário dizer que no fim das contas, como Laura, eu também estava com mais de um drinque além da conta. Quando saímos, novamente agradeci meu bom senso de ter escolhido um local próximo ao Plaza... fui trupicando até o hotel, arrastei-me até meu quarto e desabei, mal tendo tempo de tirar capa e demais assessórios que me haviam protegido da fúria dos flurries ensandecidos na madrugada gelada da Broadway.
The Lurker Says: Words are loaded pistols. (Jean Paul Sartre).
A seguir o cadeno XXII -
Should I stay or should I go?